Desejo...

Desejo...
Eu sinto teus dedos passeando por todo meu contorno...(clique na imagem)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Como no Céu


Eu isolo os cabelos, ela ajeita as mechas negras
Eu sou verde, ela azul
Eu tenho o nariz de um dobrão espanhol, ela alegra as frutas
Eu tenho os olhos renascentistas, ela um olhar impressionista
Eu ando nos cantos dos caminhos, ela solta os caminhos sem perceber
Eu me arrisco na arrebentação, ela espera a visita do mar
Eu sou da meia-noite, ela é do meio-dia
Eu deito no lado esquerdo, ela amplia o direito
Eu durmo de tevê acesa, ela sonha com o rádio ligado
Eu esqueço moedas e passagens nos bolsos, ela recolhe o resumo da roupa na máquina
Eu uso o telefone como orelha da porta, ela é a chamada a cobrar
Quando distraído, eu faço poesia atenta, quando atenta, ela faz poesia distraída
Eu tenho pés chatos e piso em falso, ela enxerga duplo e aprecia em dobro
Eu danço fora da música, ela dança com a música de dentro
Eu não sei fazer churrasco, ela faz de conta que não precisa
Eu faço as contas, ela enrola o terço na cama para dar sorte
Eu tomo café forte, ela mede a fumaça com a colher
Eu sou redundância, ela é o eufemismo
Eu não uso aspas, ela usa chapéu na praia
Eu leio estirado como uma chama, ela lê com as pernas dobradas
Eu compro o fútil, ela compra o necessário
Eu me perco em lugares abertos, ela se perde em lugares fechados
Eu falo sem parar, ela ouve sem dormir
Eu prefiro estacionar nas esquinas, ela me centra
Eu compro jornal, ela é quem lê
Eu escapo dos deveres, ela paga guardador de carro
Eu me visto sem olhar, ela corrige o que não vi
Ela não fica doente, eu adoeço quando estou nervoso
Ela pensa em tudo, eu penso o que não sobra
Eu extravio nomes, ela extravia rostos
Eu não guardo telefones, ela memoriza a lista
Eu não canto, ela me legenda o som
Eu erro na pronúncia, ela é vento simultâneo
Depois do prazer, fico com insônia, depois do prazer, ela quer dormir
Eu tenho um porão de lembranças, ela tem um sótão
Eu entro nas recordações pelos fundos, ela entra pela frente
Eu me alumbro com a mentira, ela se deslumbra com a verdade
Eu não me repito, ela imita sotaques
Eu faço amigos rápido, ela exige convivência
Eu compro as verduras que não prestam, ela cansou de me ensinar
Eu não sei contar piadas, ela não gosta de piada
Eu imagino, ela desabafa
Eu fico calmo na tristeza, ela explode de raiva
Eu alimento pressentimentos, ela confia em fatos
Ela pede desculpas, eu continuo acusando
Eu peço desculpas, ela já esqueceu
Eu sinto ciúmes de velhos amores, ela sente ciúmes de novos amores
Eu vejo a dor como uma trégua, ela observa a dor como uma lacuna
Eu me interesso pelo objeto quando o perco, ela se interessa quando o reencontra
Eu sou obcecado, ela é cautelosa
Eu sou perfeccionista, ela é comovida
Eu improviso, ela planeja
Eu fujo do aniversário, ela ensaia o seu com antecedência
Eu puxo sua cadeira, ela me seduz de lado
Eu sou uma cidade de baixo, ela é a cidade vista de cima
Eu me vingo, ela perdoa
Eu sou passional, ela pacifica
Eu me hospedo quando ela viaja, ela reside em minhas viagens
Eu acredito em Deus, Deus acredita nela
Eu rezo ao sair de casa, ela reza ao chegar
Eu escalo árvores, ela rega relâmpagos
Nenhuma noite é como as outras, as outras noites são dias inventados
Nossa risada se bate no escuro.

Carpinejar
(págs 115 a 120)

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